30 de agosto de 2015

Fadiga adrenal existe ou é um mito criado?

O termo "fadiga adrenal" tem apresentado crescente utilização na mídia, entre leigos e principalmente no meio médico. Contudo, essa condição jamais foi oficialmente reconhecida e comprovada por qualquer sociedade de endocrinologia. Em pesquisa no Google no dia 04/07/2014, a expressão "fadiga + adrenal" apresentou 114.000 resultados e "adrenal + fatigue" apresentou 2.370.000, mostrando a relevância destas terminologias na internet, principal fonte de busca de informações mundial hoje em dia.



Hoje, somente no Brasil, existem muitos profissionais de saúde que recebem formação da existência desta condição através de cursos e palestras. Pelo contrário, é bem menor o número de médicos que escuta que esta "doença" não foi comprovada nem é reconhecida. Por isso, o número de pacientes expostos a profissionais que farão o suposto diagnóstico e tratamento é maior do que o número de pessoas que não serão avaliadas para a existência desta condição não comprovada.
De acordo com a prática da maioria dos médicos que conduzem casos de “fadiga adrenal”, a pesquisa da suposta enfermidade ocorre a partir de um questionário com indagações sobre o bem-estar global, incluindo questões sobre fadiga, bem-estar, qualidade de sono, disposição e humor. Aqueles que forem enquadrados como “suspeitos” para “fadiga adrenal” serão diagnosticados com cortisol sérico basal ou ritmo de cortisol salivar, ambos incaracterísticos de acordo com a Endocrinologia. Aqueles que estiverem com os valores abaixo dos considerados como mínimos (valores que diferem completamente da prática endocrinológica usual) são diagnosticados como portadores de “fadiga adrenal” e logo recebem tratamento com corticoterapia em doses “fisiológicas”. Existem algumas variações desse fluxograma, porém em geral respeita-se esta sequência.
Entre os argumentos dados pelos profissionais que sustentam a teoria da existência desta "doença" (não reconhecida pelas sociedades de endocrinologia) está o fato de o paciente apresentar uma vasta e prolongada clínica antes de apresentar qualquer sinal bioquímico ou hormonal de depleção adrenal. Além disso, respondem muito bem do ponto de vista clínico com a reposição de corticoides.
Contudo, existem contra-argumentos muito lógicos. Primeiro, o início de corticoterapia, mesmo em baixas doses, desencadeia uma sensação temporária de bem-estar e de disposição em grande parte dos pacientes, com aparente melhora dos sintomas. Segundo, é bem estabelecido que mesmo em doses “fisiológicas”, a utilização de corticoterapia aumenta diversos riscos, como cardiovascular e de osteoporose.
Após uma ampla revisão acerca do assunto, que fora realizado da forma mais imparcial possível, várias conclusões foram tomadas.
Primeiro, embora muito utilizado na mídia leiga e nos chamarizes da internet, o termo “fadiga adrenal”, como ele é citado, foi pouquíssimo publicado. Além disso, a qualidade metodológica associada aos trabalhos que utilizam esta expressão é baixíssima. Também, nenhum dos artigos discorre ou cita a etiologia da chamada “fadiga adrenal”. Ou seja, não existe trabalho de qualidade aceitável até o momento. Lembrem-se, trabalho científico não significa evidência. Existem boa e má ciência!
Embora amplamente utilizado na prática médica em vários locais do mundo, o "questionário do Dr. Wilsom" para diagnóstico de “fadiga adrenal” não teve absolutamente nenhum estudo para validação ou utilização como escore de fadiga, ao menos indexado. Por outro lado, o questionário SF-36 Vitality Scale, um escore bem validado e com real grau de correspondência com o grau de fadiga, foi o método utilizado por boa parte dos trabalhos que visaram correlacionar fadiga e alterações do cortisol.
Sabendo-se que o eixo corticotrófico pode estar seriamente comprometido como consequência de alguma doença ou alteração, é recomendado que se avaliem, diagnósticos diferenciais. Entre eles os principais para “fadiga adrenal” são: (1) síndrome da apneia obstrutiva do sono, (2) insuficiência adrenal, (3) trabalho excessivo, (4) diagnósticos mentais, (5) inversão e irregularidade de turno no trabalho, (6) deficiências hormonais de outros eixos, (7) hepatopatias, (8) cardiopatias, (9) nefropatias, (10) DPOC, (11) doenças auto-imunes. Normalmente, estas doenças ou outros problemas justificam praticamente quase totalidade dos casos.
A maior parte dos trabalhos foi excluída devido a falta de qualidade da metodologia e de caráter unicamente descritivos, sem referências de qualidade. Dada a heterogeneidade e diversidade da qualidade e dos tipos de dados e das respostas, pouco pode-se analisar – o cortisol ao acordar e 30 minutos após foi um dos dados mais reproduzidos. O grande número de trabalhos que correlacionou fadiga e cortisol ao levantar ou ao ritmo de cortisol salivar se deve ao fato de que estudos prévios utilizaram estes parâmetros como marcadores. Apenas um estudo realizou uma tentativa de validação. Contudo, é importante ressaltar que a atenuação do cortisol ao levantar, ou seja, o não aumento ou o aumento inadequado em relação ao esperado tende a ser uma consequência, e não causa, da fadiga.
A insuficiência adrenal absoluta pode ser diagnosticada através do cortisol basal abaixo de 3,0 mg/dL, na ausência de medicamentos orais, tópicos, nasais, oftalmológicos ou de qualquer outra espécie. A insuficiência adrenal pode ser de origem primária, cuja deficiência é na própria glândula adrenal, ou secundária, quando a deficiência adrenal decorre da baixa produção de ACTH (que estimula a liberação de cortisol) pela glândula hipófise. Contudo, a forma mais adequada de se avaliar reserva adrenal é por testes funcionais, bem estabelecidos e praticados por endocrinologistas. Para tais avaliações, pode-se realizar o teste da cortrosina, um ACTH sintético para avaliar a reserva adrenal. A falha da resposta ao teste da cortrosina pode denotar insuficiência adrenal primária relativa ou insuficiência adrenal central (hipofisária ou hipotalâmica). Para o teste de avaliação da funcionalidade do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA) por completo, a avaliação padrão-ouro é o teste de estímulo por insulina, cujo objetivo é provocar hipoglicemia e criar uma situação de estresse onde um indivíduo saudável irá liberar invariavelmente uma certa quantidade de cortisol. A não liberação adequada demonstra, em algum grau, um comprometimento do eixo HHA. Estes testes são as formas adequadas e recomendadas pelas sociedades de Endocrinologia, para avaliação da função adrenal.
Importante ressaltar que, mesmo numericamente grande, a maior parte dos estudos é exclusivamente descritiva. Ou não buscaram referências, ou fizeram revisões de outros estudos. E todos estes trabalhos não acrescentam em termos de evidência ou qualidade de informação acerca da suposta “fadiga adrenal”.
Embora não tenham utilizado critérios adotados pela Endocrinologia, grande parte dos trabalhos mostrou correlações claras e significativas entre pessoas com maior fadiga e alterações da homeostase e do ritmo de cortisol. Independente do grau de validação dos exames realizados, o encontro da associação, direta ou inversa entre determinado exame e alguma alteração clínica, chama atenção para que o mesmo seja melhor investigado. Contudo, por não se tratar dos testes clássicos e bem estabelecidos de reserva adrenal, é possível que as alterações nos exames encontrados sejam consequência e não causa do quadro de fadiga, pois os mesmos exames não foram correlacionados com verdadeiros testes que mostram a real reserva adrenal. Cabe ressaltar que diferentes populações, como os doentes de diversas patologias anteriormente descritas, poderiam eventualmente ter as alterações descritas. Existe uma importante lacuna em termos de qualidade de informação no que tange a estudos de diminuição de resposta do eixo HHA para indivíduos saudáveis, fadigados (ou em burnout) e que não se encaixam em nenhuma doença, e mesmo para diferentes doenças.
Observa-se que foram criados “novos critérios” que foram fracamente validados, pois não houve correlação com o padrão-ouro vigente e nem com histopatológico ou atividade/liberação direta de cortisol. Nenhum dos autores dos artigos revisados tem formação em Endocrinologia, o que resultou em ausência de trabalhos que eventualmente utilizariam os critérios padrão-ouro da Endocrinologia. A falta de comunicação ou de co-autoridade com a Endocrinologia poderia imprimir uma melhora considerável na qualidade dos estudos e no poder dos achados. Além disso o número de indivíduos avaliados é, sob o ponto de vista de validação, muito aquém do mínimo requerido.
Nestes pequenos estudos, o cortisol ao levantar mais baixo pode representar uma consequência, e não a causa do problema. Ele não expressa a reserva adrenal e por isso não pode ser definido como fator causador, somente como marcador, o que implica em que o uso de hidrocortisona não corrigirá a condição (embora possa causar melhora sintomática temporária devido a ação do próprio fármaco).
O cortisol urinário de 24 horas é o método que permite “enxergar” a liberação continuada em um período de 24 horas, porque a sua concentração é diretamente proporcional e linear com o cortisol sérico, e poderia ser devidamente estudado no futuro.
Dosar cortisol ou qualquer outro marcador apresentado pela maioria destes estudos não ajuda a avaliar necessariamente uma alteração do eixo HHA como etiologia para total ou parte dos sintomas. Portanto, não se pode concluir, e nem sugerir, que o uso de corticoterapia vá corrigir o fator contribuinte. É importante ter muito cuidado em avaliar “resposta terapêutica” com novas dosagens do cortisol, pois a melhora ocorrerá pela ação decorrente do próprio fármaco (corticoide a curto prazo aumenta disposição), sem que isso signifique uma real resposta a doença.
Em suma, as alterações descritas acerca do cortisol podem tanto ser uma das gêneses dos problemas, por falhar aos estímulos gerados, como pode ser consequência da falta de estímulos para a ativação do eixo corticotrófico. Um exemplo claro de alteração do eixo HHA como consequência, e não causa de problemas, é a depressão maior, que torna o ciclo circadiano aberrante, com diminuição da queda esperada ao longo do dia. Portanto, é importante que se conheça a relação entre o eixo liberador de cortisol e os sintomas ou doenças estudados, para que não se atribuam problemas às alterações que na realidade são consequências, como no caso da depressão maior.
Em conclusão, teorias acerca do eixo HHA na gênese de fadiga sempre tiveram um grande espaço na literatura. Contudo, poucos trabalhos pesquisaram e apresentaram de fato dados que aumentassem a robustez destas informações. A relação causa-efeito muitas vezes pode ser um viés confundidor que gera conclusões precipitadas.
A “fadiga adrenal” não foi comprovada, é improvável que exista da forma como é descrita, e se existir, deve ser devidamente avaliada com o que a endocrinologia oferece de critérios diagnósticos para reserva adrenal, e não por critérios “inventados”. Alguns grupos, como pacientes expostos a quimioterapia e os fadigados por “overtraining” podem apresentar alterações, porém mais trabalhos são necessários. É um momento importante para que os “divulgadores” desviem seus esforços para realização de estudos de qualidade para demonstrar que suas afirmações merecem ser consideradas. Enquanto isso, se houver desconfiança de insuficiência adrenal relativa, os testes que avaliam esta alteração de maneira apropriada ainda deverão ser realizados.


Autor principal:
Dr. Flávio A. Cadegiani (endocrinologista e metabolista de Brasilia – DF – CRM/DF 16.219 / CREMESP 160.400) – É DOUTORANDO em Adrenal pela UNIFESP, sendo orientado por uma das maiores autoridades do Brasil no tema, Dr. Cláudio Elias Kater.

Colaboradores do post:
Dr. Ricardo Martins Borges (Nutrólogo de Ribeirão Preto – SP, mestre em medicina pela FMRP – USP) @clinicaricardoborges,
Dra. Tatiana Abrão (endocrinologista e nutróloga de Sorocaba – SP) @tatianaabrao,
Dra. Elza Daniel de Mello (pediatra, gastropediatra, nutróloga em Porto Alegre – RS, mestre e doutora em Ciências médicas – Pediatra pela UFRGS),
Dr. Frederico Lobo (Clínico geral de Goiânia – GO) @drfredericolobo,
Dr. Daniella Costa (nutróloga de Uberlândia – MG) @dradaniellacosta,
Dr. Reinaldo Nunes (endocrinologista e nutrólogo de Campos – RJ, mestre em endocrinologia pela UFRJ) @drreinaldonunes,
Dr. Mateus Dornelles Severo (endocrinologista de Santa Maria – RS, Mestre em Ciências Médicas – Endocrinologia pela UFRGS e doutorando em Ciências médicas – Endocrinologia pela UFRGS) @drmateusendocrino,
Dr. Pedro Paulo Prudente (médico do esporte de Gramado – RS) @drpedropauloprudente,
Dra. Patricia Salles (endocrinologista de São Paulo – SP, mestranda em endocrinologia pela FMUSP), @endoclinicdoctors,
Dra. Camila Bandeira (endocrinologista de Manaus – AM) @endoclinicdoctors,
Dr. Walter Nobrega (clínico Geral do Rio de Janeiro – RJ) @drwalternobrega,
Dra. Deborah Carneiro (pediatra de Goiânia – GO) @dehcarneirolima,
Dr. Yuri Galeno (endocrinologista de Natal – RN) @dryuri_insyde,
Dra. Flávia Tortul (endocrinologista de Campo Grande – MS) @flaviatortul



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